terça-feira, 30 de maio de 2017





O INFERNO 


"Inferno é um estado de consciência em que não há entrega total a Deus, onde procuramos fazer uma troca, colocando nossos interesses pessoais no lugar do cumprimento da vontade divina...
Viver no Inferno é quando a vida nos parece sem sentido, sombria, tediosa, assustadora, sem objetivo, separada de todas as coisas e da Criação.
Tal alienação de Deus, que existe em vários graus e que se originou com a Queda dos Anjos, cria, no plano cósmico, novos mundos, de acordo com as atitudes transformadas dos seus autores: mundos escuros, designados na literatura espiritual como esferas de escuridão (Qliphot, na Cabala), e que nada mais são do que as formas de energia de desarmonia e ódio."


Clarice Nunes 
Dicionário de Pathwork

quinta-feira, 25 de maio de 2017




SER OU NÃO SER


São poucas as pessoas, em nossa cultura, que tem a coragem de ser si mesmas. A maioria adota papéis, veste máscaras, põe disfarces. Não acreditam que seu self genuíno seja aceitável. Não foi aceito pelos pais : "não faça essa cara triste", diz a mãe. "Ninguém amará você! Ponha um sorriso nessa cara !".
E assim, a criança coloca uma máscara sorridente  para ser amada. "Ombros pra trás, peito para a frente ", diz o pai para seu filho pequeno, que então passa a adotar essa fachada de masculinidade. Os papéis e jogos, em geral, desenvolvem-se com mais sutileza em resposta a exigências implícitas e a pressões por parte dos pais.
As máscaras, disfarces e papéis tornam-se estruturadas no corpo porque a criança acredita que esta impostura conquistará a aprovação e o amor dos  pais. Nossos corpos são moldados por forças sociais, dentro da família, que modelam e determinam nosso destino...que é o de termos que tentar agradar para receber aprovação e amor.


Alexander Lowen - "Medo da Vida"


terça-feira, 9 de maio de 2017

CRIANDO O FALSO EU



                                                                                                                                                                                              Em suas tentativas de reprimir pensamentos, sentimentos e comportamentos, os pais usam várias técnicas. Às vezes emitem ordens claras: “Não me diga que você está pensando assim!”,  “Menino crescido não chora !”, “Não bote a mão aí nessa parte do seu corpo !”,  “Nunca mais quero ouvir você dizendo isso !”, e “Não é assim que a gente age aqui na nossa família !”   Ou se não – como fazem as mães quando vão com o filho às lojas – ralham, ameaçam e espancam.

Muitas vezes os pais moldam a criança através de um processo mais sutil de invalidação – simplesmente optam por não ver ou não recompensar determinados comportamentos. Por exemplo, se os pais dão pouco valor ao desenvolvimento intelectual, presenteiam os filhos com brinquedos e equipamentos esportivos, não com livros nem com kits de ciências. Se os pais acreditam que as meninas devem ser gentis e femininas e os meninos fortes e afirmativos só recompensarão seus filhos por comportamentos adequados ao sexo de cada um. Por exemplo, se o garoto entra na sala rebocando um brinquedo pesado, dizem: “Olha que garotão forte que você é !”, mas se a menina é que entra com aquele mesmo brinquedo, eles previnem: “Cuidado para não estragar o seu vestidinho !”.

A influência mais profunda, contudo, que os pais exercem sobre os filhos é através do exemplo. A criança observa instintivamente as escolhas que os pais fazem, as liberdades, prazeres que eles se concedem, os talentos que desenvolvem, as habilidades que ignoram e as regras que seguem. Isso tudo tem um efeito profundo sobre ela. “É assim que se vence na vida !”.  Quer a criança aceite o modelo dos pais, quer se rebele contra ele, essa socialização inicial também desempenha um papel significativo na escolha dos companheiros.

A aceitação pela criança dos ditames da sociedade passa por diversos estágios previsíveis. É típico que a primeira resposta seja esconder dos pais comportamentos proibidos. A criança tem pensamentos de raiva, mas não os verbaliza. Ela explora seu corpo na privacidade do quarto, atormenta os irmãozinhos menores quando os pais estão fora. E, finalmente, chega à conclusão de que alguns pensamentos e sentimentos são tão inaceitáveis que deveriam ser eliminados de dentro de si própria; assim ela constrói um pai e uma mãe imaginários dentro de sua cabeça para policiar seus próprios pensamentos e atividades – essa é a parte a que a Psicologia Freudiana batizou de Superego.

A partir desse momento, sempre que tem um pensamento proibido ou se permite um comportamento “inaceitável “, a criança experimenta um golpe de ansiedade administrado por ela mesma.  Esse golpe é tão desagradável que ela faz adormecer algumas dessas partes proibidas de si mesma, ela as reprime. O preço ultimo de sua obediência é a perda da totalidade.

Para preencher esse vazio, a criança cria um “falso eu “, uma estrutura de caráter que serve ao duplo propósito de camuflar as partes do seu ser que ela reprimiu e protegê-la  contra novos sofrimentos. Por exemplo, o menino criado por uma mãe inacessível e sexualmente repressora pode tornar-se um “durão”. Ele diz a si mesmo: “Não ligo se minha mãe não é afetuosa. Não preciso dessa bobagem sentimental. Posso me virar sozinho ! E, outra coisa... eu acho que sexo é sujo !”
E ele acaba por aplicar esse padrão de resposta a todas as situações. Não importa quem tente se aproximar dele, ele levanta a mesma barricada. Mais tarde, depois de superar a relutância em se envolver com relacionamentos amorosos, é provável  que ele venha a criticar sua companheira pelo desejo de intimidade e saudável sexualidade que ela demonstra: “Por que você quer tanto contato ? Por que você é tão obcecada por sexo ? Isso não é normal !”

Um menino diferente talvez reagisse de modo oposto a esse tipo de criação; ele iria exagerar seus problemas, na esperança de que alguém viesse em seu socorro: “Coitadinho de mim, estou ferido, profundamente ferido. Preciso de alguém que tome conta de mim !”

Outro menino talvez se tornasse avarento, lutando para se apoderar de cada naco de amor, comida ou bens materiais que cruzassem seu caminho, com medo de nunca ter o bastante.  Mas qualquer que seja a natureza do falso eu, seu propósito é o mesmo : minimizar a dor de perder uma parte da totalidade divina da criança original.

Em algum ponto na vida de uma criança , no entanto, essa engenhosa forma de auto-proteção torna-se a causa de novos ferimentos, à medida que ela é criticada por possuir esses traços negativos. Os outros a condenam por ser inacessível ou carente ou egoísta ou gorda. Os que atacam não vêem a ferida que ela tenta proteger nem avaliam a sábia natureza de sua defesa; tudo o que vêem é o lado neurótico de sua personalidade. Ela e julgada inferior, ela não é íntegra.

E agora a criança está presa na sua própria armadilha. Ela precisa agarrar-se a seus traços adaptativos de caráter porque eles servem a um propósito útil , mas ela não quer ser rejeitada. O que pode ela fazer ? A solução é negar ou atacar os que criticam. “Não sou fria e distante”, diz ela em defesa própria, “sou, isso sim, forte e independente !”, ou “não sou fraca e carente ; sou sensível !”. Ou ainda, “não sou ávida e egoísta, sou previdente e prudente !”. Em outras palavras : “Não é de mim que você está falando. Você só está me vendo sob uma luz negativa !”

Num certo sentido ela está certa: seus traços negativos não são parte da sua natureza original, foram forjados na dor e tornaram-se parte de uma identidade que foi assumida, um “pseudônimo que a ajuda em suas manobras num mundo complexo e as vezes hostil. Isso não quer dizer, no entanto , que ela não tem tais traços negativos: existem inúmeras testemunhas que poderão comprovar que ela os possui. Mas, para manter uma auto-imagem positiva e ampliar suas chances de sobrevivência, ela precisa negá-los. Esses traços negativos tornam-se aquilo que chamamos “o Eu Reprimido”, partes do falso Eu que são demasiado dolorosas para serem reconhecidas.

Classificamos a proliferação de partes do Eu Original - aquela unidade amorosa na qual nascemos -  em três divisões:

  1. o “Eu Perdido” – as partes que fomos obrigados a reprimir devido às exigências da sociedade
  2. o “Falso Eu” – a fachada que erigimos para preencher o vazio criado por essa repressão e pela falta de desenvolvimento
  3. o “Eu Reprimido” – partes negativas do nosso falso Eu que, não sendo aprovadas por nós mesmos, as negamos 
 De toda essa complexa colagem, em geral só percebemos as partes do nosso Ser original que ainda estão intactas bem como certos aspectos do falso Eu. Juntos, esses elementos formam a nossa “Personalidade”, o modo como nos descrevemos para os outros.

O Eu Perdido está quase totalmente fora de nossa percepção; rompemos praticamente todas as ligações com partes reprimidas do nosso ser.

O Eu Reprimido (as partes destrutivas do falso Eu) paira logo abaixo do limiar de nossa percepção e está ameaçado de emergir. Para mantê-lo oculto arregimentamos todas as nossas forças ou então projetamos seu conteúdo sobre os outros.
  
Harville Hendrix






sábado, 6 de maio de 2017

O Rio dos Sentimentos





Nossos sentimentos desempenham um papel muito importante por dirigirem todos os nossos pensamentos e ações. Existe em nós um rio de sentimentos, no qual cada gota d'água é um sentimento diferente e cada um depende de todos os outros para sua existência. Para observar esse rio, sentamo-nos à sua margem e identificamos cada sentimento à medida que ele vem à tona, passa por nós e desaparece.
Há três tipos de sentimentos — agradáveis, desagradáveis e neutros. Quando temos um sentimento desagradável, podemos querer afastá-lo. O mais eficaz é voltar à nossa respiração consciente e apenas observá-lo, identificando-o em silêncio para nós mesmos. "Inspirando, sei que há um sentimento desagradável em mim. Expirando, sei que há um sentimento desagradável em mim." Chamar o sentimento pelo seu nome, "raiva", "tristeza", "alegria" ou "felicidade", nos ajuda a identificá-lo com clareza e reconhecê-lo em maior profundidade.

Podemos usar nossa respiração para entrar em contato com nossos sentimentos e aceitá-los. Se nossa respiração for leve e tranqüila — resultado natural da respiração consciente — nossa mente e nosso corpo irão lentamente se tornando leves, tranqüilos e claros. E da mesma forma nossos sentimentos. A observação plenamente consciente se baseia no princípio da "não-dualidade": nosso sentimento não está separado de nós nem foi causado apenas por algo externo a nós. Nosso sentimento é nosso eu, e temporariamente nós somos esse sentimento. Não submergimos nesse sentimento, nem nos aterrorizamos com ele, tampouco o rejeitamos. Nossa atitude de não nos agarrarmos aos nossos sentimentos e de tampouco rejeitá-los é a atitude de desapego, uma parte vital da prática da meditação.

Se encararmos nossos sentimentos desagradáveis com cuidado, afeição e não-violência, podemos transformá-los naquele tipo de energia que é saudável e que tem a capacidade de nos nutrir. Através da observação consciente, nossos sentimentos desagradáveis podem ser muito esclarecedores para nós, proporcionando-nos revelações e compreensão a respeito de nós mesmos e da nossa sociedade.

A não-cirurgia

A medicina ocidental dá ênfase demais à cirurgia. Os médicos querem eliminar o que não for desejável. Quando temos algum distúrbio no corpo, eles muitas vezes nos aconselham uma operação. O mesmo parece se aplicar à psicoterapia. Os terapeutas pretendem nos ajudar a descartar o que é indesejável e manter somente o que é desejável. Mas o que sobra pode não ser muito. Se tentarmos nos livrar do que não queremos, podemos nos livrar da maior parte de nós mesmos.

Em vez de agir como se pudéssemos nos desfazer de partes de nós mesmos, deveríamos aprender a arte da transformação. Podemos transformar nossa raiva, por exemplo, em algo mais salutar, como a compreensão. Não precisamos de cirurgia para eliminar nossa raiva. Se nos enfurecermos com nossa raiva, teremos duas raivas ao mesmo tempo. Devemos apenas observá-la com amor e atenção. Se cuidarmos da nossa raiva dessa forma, sem tentar fugir dela, ela se transformará. E uma pacificação. Se estivermos em paz em nosso íntimo, poderemos aceitar nossa raiva. E possível tratar a depressão, a ansiedade, o medo ou qualquer sentimento desagradável dessa mesma forma.


Passos para transformar os sentimentos

O primeiro passo ao lidar com os sentimentos é reconhecer cada sentimento no instante em que surge.
O meio para isso é a plena consciência. No caso do medo, por exemplo, você recorre à plena consciência, olha para o medo e o reconhece como medo. Você sabe que o medo brotou de você mesmo e que a plena consciência também brotou de você mesmo. Os dois estão em você, não em luta, mas um cuidando do outro.

O segundo passo consiste em se tornar uno com o sentimento.

Melhor não dizer, "Vá embora, Medo. Não gosto de você. Você não é eu." Muito mais eficaz é dizer, "Oi, Medo. Como é que você está hoje?" Em seguida, você pode estimular esses seus dois aspectos, a plena consciência e o medo, a se cumprimentarem como amigos e a se unirem. Isso pode parecer assustador, mas, como você já sabe que você é mais do que seu medo, não é preciso se amedrontar. Desde que sua mente esteja alerta, ela fará companhia ao seu medo. A prática fundamental é nutrir a plena consciência com a respiração consciente, para mantê-la alerta, cheia de vida e força. Embora no inicio sua plena consciência possa não ser muito potente, se você a alimentar, ela se tornará mais forte. Contanto que a sua consciência esteja plena e presente, você não será submerso pelo medo. Na realidade, você começará a transformá-lo no exato instante em que dentro de si der à luz a percepção.

O terceiro passo é o de acalmar o sentimento.

Como a consciência plena está cuidando bem do seu medo, ele começa a acalmar-se. "Inspirando, acalmo as atividades do corpo e da mente." Você acalma seu sentimento só por estar com ele, como uma mãe segurando ternamente o filhinho que chora. Ao sentir a ternura da mãe, o neném se acalma e pára de chorar. A mãe é sua mente alerta, nascida das profundezas da sua consciência, e ela tratará do sentimento da dor. A mãe que segura o bebê forma uma unidade com ele. Se a mãe estiver pensando em outras coisas, a criancinha não se acalmará. A mãe tem de abandonar as outras coisas e apenas segurar seu filhinho. Por isso, não evite seu sentimento. Não diga, "Você não é importante. Você é só um sentimento." Passe a formar uma unidade com ele. Você pode dizer, "Expirando, acalmo meu medo."

O quarto passo é largar o sentimento, soltá-lo.

Graças à sua calma, você está à vontade, mesmo em meio ao medo; e sabe que esse medo não vai crescer e se transformar em algo esmagador. Quando você se descobre capaz de tomar conta do seu medo, ele já está reduzido a um mínimo, tornando-se mais brando e menos desagradável. Agora você pode sorrir para ele e deixá-lo partir, mas por favor não pare por aqui. Acalmar e largar um sentimento são apenas curas para os sintomas. Você agora tem a oportunidade de se aprofundar e trabalhar na transformação da raiz do seu medo.

O quinto passo é olhar profundamente.

Você examina em profundidade o seu bebê — seu sentimento de medo — para ver o que está errado, mesmo depois que o bebê parou de chorar, mesmo depois que o medo se foi. E impossível segurar uma criança no colo o tempo todo. Por isso, você deve examiná-la para ver a causa do que está errado. Com esse exame, você verá o que o ajudará a começar a transformar o sentimento. Você perceberá, por exemplo, que seu sofrimento tem muitas causas, internas e externas ao seu corpo. Se há algo de errado em volta dele, se você conserta a situação, com carinho e cuidado, ele se sentirá melhor. Ao examinar seu bebê, você verá os elementos que o estão fazendo chorar. Ao vê-los, você saberá o que fazer e o que não fazer para transformar o sentimento e se sentir livre.

Esse processo é semelhante ao da psicoterapia. Em companhia do paciente, o terapeuta observa a natureza da dor. Muitas vezes, o terapeuta pode revelar causas de sofrimento que se originam da forma pela qual o paciente encara a vida, das opiniões que ele tem sobre si mesmo, sobre a sua cultura e o mundo em geral. O terapeuta examina esses pontos de vista e essas opiniões com o paciente, e juntos eles colaboram para libertá-lo daquele tipo de prisão em que estava. No entanto, o esforço do paciente é crucial. O professor deve trazer à luz o professor que existe dentro do aluno; e o psicoterapeuta deve trazer à luz o psicoterapeuta que está no íntimo do seu paciente. O "psicoterapeuta interno" do paciente poderá então trabalhar em tempo integral de uma forma muito eficaz.

O terapeuta não trata do paciente simplesmente lhe repassando um outro conjunto de opiniões. Ele tenta ajudar o paciente a perceber que tipos de idéias e de crenças levaram ao seu sofrimento. Muitos pacientes querem se ver livres dos sentimentos dolorosos, mas não querem se livrar das opiniões, dos pontos de vista (CRENÇAS) que são as verdadeiras raízes dos seus sentimentos. Portanto, o terapeuta e o paciente têm que trabalhar juntos para ajudar o paciente a ver as coisas como elas são. O mesmo vale para quando recorremos à plena consciência para transformar nossos sentimentos. Depois de reconhecermos o sentimento, de nos tornarmos unos com ele, de o acalmarmos e de o largarmos, podemos examinar suas causas em profundidade. Elas muitas vezes se baseiam em percepções incorretas. Assim que compreendemos as causas e a natureza dos nossos sentimentos, eles começam a se transformar.


(Thich Nhat Hanh. “Paz a cada passo: como manter a mente desperta em seu dia-a-dia”
Ed. Rocco, 1993