Em suas tentativas de reprimir pensamentos, sentimentos e
comportamentos, os pais usam várias técnicas. Às vezes emitem ordens claras:
“Não me diga que você está pensando assim!”,
“Menino crescido não chora !”, “Não bote a mão aí nessa parte do seu
corpo !”, “Nunca mais quero ouvir você
dizendo isso !”, e “Não é assim que a gente age aqui na nossa família !” Ou se não – como fazem as mães quando vão com
o filho às lojas – ralham, ameaçam e espancam.
Muitas vezes os pais moldam a criança através de um processo mais sutil
de invalidação – simplesmente optam por não ver ou não recompensar determinados
comportamentos. Por exemplo, se os pais dão pouco valor ao desenvolvimento
intelectual, presenteiam os filhos com brinquedos e equipamentos esportivos,
não com livros nem com kits de ciências. Se os pais acreditam que as meninas
devem ser gentis e femininas e os meninos fortes e afirmativos só recompensarão
seus filhos por comportamentos adequados ao sexo de cada um. Por exemplo, se o
garoto entra na sala rebocando um brinquedo pesado, dizem: “Olha que garotão
forte que você é !”, mas se a menina é que entra com aquele mesmo brinquedo,
eles previnem: “Cuidado para não estragar o seu vestidinho !”.
A influência mais profunda, contudo, que os pais exercem sobre os filhos
é através do exemplo. A criança
observa instintivamente as escolhas que os pais fazem, as liberdades, prazeres
que eles se concedem, os talentos que desenvolvem, as habilidades que ignoram e
as regras que seguem. Isso tudo tem um efeito profundo sobre ela. “É assim que se
vence na vida !”. Quer a criança aceite
o modelo dos pais, quer se rebele contra ele, essa socialização inicial também
desempenha um papel significativo na escolha dos companheiros.
A aceitação pela criança dos ditames da sociedade passa por diversos estágios
previsíveis. É típico que a primeira resposta seja esconder dos pais
comportamentos proibidos. A criança tem pensamentos de raiva, mas não os
verbaliza. Ela explora seu corpo na privacidade do quarto, atormenta os
irmãozinhos menores quando os pais estão fora. E, finalmente, chega à conclusão
de que alguns pensamentos e sentimentos são tão inaceitáveis que deveriam ser
eliminados de dentro de si própria; assim ela constrói um pai e uma mãe
imaginários dentro de sua cabeça para policiar seus próprios pensamentos e
atividades – essa é a parte a que a Psicologia Freudiana batizou de Superego.
A partir desse momento, sempre que tem um pensamento proibido ou se
permite um comportamento “inaceitável “, a criança experimenta um golpe de
ansiedade administrado por ela mesma.
Esse golpe é tão desagradável que ela faz adormecer algumas dessas
partes proibidas de si mesma, ela as reprime.
O preço ultimo de sua obediência é a perda da totalidade.
Para preencher esse vazio, a criança cria um “falso eu “, uma estrutura de caráter que serve ao duplo propósito
de camuflar as partes do seu ser que ela reprimiu e protegê-la contra novos sofrimentos. Por exemplo, o
menino criado por uma mãe inacessível e sexualmente repressora pode tornar-se
um “durão”. Ele diz a si mesmo: “Não ligo se minha mãe não é afetuosa. Não
preciso dessa bobagem sentimental. Posso me virar sozinho ! E, outra coisa...
eu acho que sexo é sujo !”
E ele acaba por aplicar esse padrão de resposta a todas as situações.
Não importa quem tente se aproximar dele, ele levanta a mesma barricada. Mais
tarde, depois de superar a relutância em se envolver com relacionamentos
amorosos, é provável que ele venha a
criticar sua companheira pelo desejo de intimidade e saudável sexualidade que
ela demonstra: “Por que você quer tanto contato ? Por que você é tão obcecada
por sexo ? Isso não é normal !”
Um menino diferente talvez reagisse de modo oposto a esse tipo de
criação; ele iria exagerar seus problemas, na esperança de que alguém viesse em
seu socorro: “Coitadinho de mim, estou ferido, profundamente ferido. Preciso de
alguém que tome conta de mim !”
Outro menino talvez se tornasse avarento, lutando para se apoderar de
cada naco de amor, comida ou bens materiais que cruzassem seu caminho, com medo
de nunca ter o bastante. Mas qualquer
que seja a natureza do falso eu, seu propósito é o mesmo : minimizar a dor de
perder uma parte da totalidade divina da criança original.
Em algum ponto na vida de uma criança , no entanto, essa engenhosa forma
de auto-proteção torna-se a causa de novos ferimentos, à medida que ela é
criticada por possuir esses traços negativos. Os outros a condenam por ser
inacessível ou carente ou egoísta ou gorda. Os que atacam não vêem a ferida que
ela tenta proteger nem avaliam a sábia natureza de sua defesa; tudo o que vêem
é o lado neurótico de sua personalidade. Ela e julgada inferior, ela não é
íntegra.
E agora a criança está presa na sua própria armadilha. Ela precisa
agarrar-se a seus traços adaptativos de caráter porque eles servem a um
propósito útil , mas ela não quer ser rejeitada. O que pode ela fazer ? A
solução é negar ou atacar os que criticam. “Não sou fria e distante”, diz ela
em defesa própria, “sou, isso sim, forte e independente !”, ou “não sou fraca e
carente ; sou sensível !”. Ou ainda, “não sou ávida e egoísta, sou previdente e
prudente !”. Em outras palavras : “Não é de mim que você está falando. Você só
está me vendo sob uma luz negativa !”
Num certo sentido ela está certa: seus traços negativos não são parte da
sua natureza original, foram forjados na dor e tornaram-se parte de uma
identidade que foi assumida, um “pseudônimo que a ajuda em suas manobras num
mundo complexo e as vezes hostil. Isso não quer dizer, no entanto , que ela não
tem tais traços negativos: existem inúmeras testemunhas que poderão comprovar
que ela os possui. Mas, para manter uma auto-imagem
positiva e ampliar suas chances de sobrevivência, ela precisa negá-los. Esses
traços negativos tornam-se aquilo que chamamos “o Eu Reprimido”, partes do falso
Eu que são demasiado dolorosas para serem reconhecidas.
Classificamos a proliferação de partes do Eu Original - aquela unidade
amorosa na qual nascemos - em três
divisões:
- o “Eu Perdido” – as partes que fomos
obrigados a reprimir devido às exigências da sociedade
- o “Falso Eu” – a fachada que
erigimos para preencher o vazio criado por essa repressão e pela falta de
desenvolvimento
- o “Eu Reprimido” – partes negativas
do nosso falso Eu que, não sendo aprovadas por nós mesmos, as negamos
De toda essa complexa colagem, em geral só percebemos as partes do nosso
Ser original que ainda estão intactas bem como certos aspectos do falso Eu.
Juntos, esses elementos formam a nossa “Personalidade”, o modo como nos
descrevemos para os outros.
O Eu Perdido está quase totalmente fora de nossa percepção; rompemos
praticamente todas as ligações com partes reprimidas do nosso ser.
O Eu Reprimido (as partes destrutivas do falso Eu) paira logo abaixo do
limiar de nossa percepção e está ameaçado de emergir. Para mantê-lo oculto arregimentamos
todas as nossas forças ou então projetamos seu conteúdo sobre os outros.
Harville Hendrix